sexta-feira, 8 de maio de 2009

Bendita louvada seja Dona Maria do Horto

Há algum tempo não posto nada por aqui. Mas, estive revendo as imagens que trouxe do IV Encontro dos Mestres do Mundo – em Dezembro passado, no sertão do Cariri – e reencontrei com o bendito de Dona Maria do Horto. Um canto sublime que, por obrigação, tenho de compartilhar com vocês.
Lembrei-me do nosso encontro no Crato Tênis Clube. Ouvi uma voz, numa das rodas de debate que estava acontecendo por lá e me aproximei. Com suas vestes e penteados simples e belos, Maria do Horto falava da vida, do fato de ser “moça velha” – mulher de idade relativamente avançada que não se casou – e das razões do seu cantar.
Em seguida, pediu licença à roda, e entoou um bendito homenageando Frei Damião, franciscano italiano que se tornou santo popular no Nordeste. Para os olhos, uma bela manifestação de fé. Para os ouvidos, um fino deleite. Não tem como conter adjetivos para descrevê-la. Imaginei Glauber Rocha gravando a voz de Dona Maria – talvez cantando outro bendito – para integrar a trilha sonora de O Dragão da maldade contra o santo guerreiro.
Passaram-se uma ou duas horas do primeiro contato, encontrei-a, novamente, andando pelo clube. Não hesitei em convidá-la:
- A Senhora pode cantar outro bendito? Eu filmei o de Frei Damião e quero filmar outros.
- Calma aí. Eu vou ali e volto para cantar pru’cê o bendito do meu Padim [Ciço]. – respondeu-me com pressa, demonstrando que tinha algo urgente para resolver.
A volta não aconteceu. Cheguei a vê-la em outros momentos, mas não tive oportunidade de lançar outro convite.
Exatos cinco meses se passaram depois da viagem. Imagino eu que Maria esteja agora na Colina do Horto – comunidade onde mora – na vizinhança do mais notável cartão postal de Juazeiro do Norte: a estátua de 17 metros do Padre Cícero Romão Batista. Vez por outra, ela deve cantar o “bendito do padim” aos pés do monumento, alimentando a alma das toneladas de concreto.
Assunte como é que Maria do Horto canta o bendito de Frei Damião e Frei Fernando.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Um Lero com Silvio Tendler

Na VI Bienal da UNE, bati um lero com Silvio Tendler. O cineasta e professor da PUC-RJ, especialista em cinebiografias políticas, participou da abertura do evento, apresentou seu filme Josué de Castro – Cidadão do Mundo, ainda contribuiu com um bate-papo sobre cinema brasileiro.

Entre os principais trabalhos de Tendler estão Os anos JK, Jango, Glauber - o labirinto do Brasil e Encontro com Milton Santos. Assunte só o que ele me falou...

Por que a opção pela cinebiografia?

Porque quando eu estudei cinema documentário, estudei com um documentarista, o Joris Ivens, que dizia que o cinema precisa de personagem no documentário, à semelhança da ficção. Não fale de um tema em abstrato. Se você quer falar de democracia, fale de JK; se você quer falar de justiça social, fale de Jango; revolução, fale de Marighela; arte revolucionária, fale do Glauber. Então, eu aprendi esta lição com ele e estou fazendo isso. Eu acho que eu poderia falar da democracia como uma abstração, mas, falando do governo JK, estou falando de um momento do Brasil que a democracia funcionou. Eu poderia falar da justiça social, mas, falando do Jango, eu estou falando da justiça social, de reforma agrária, uma série de coisas que funcionaram. Então, é nesse sentido que eu acho que você deve ter personagem. Aí, o filme biografia funciona no sentido de trabalhar uma temática, tendo um personagem como fio condutor.

Há um consenso entre vários biografistas de que é muito mais fácil se biografar alguém que já morreu. Nota-se também que em sua obra existe a predominância de personagens mortos. Você tem isso como preferência?

Não é questão de preferência, é questão de coerência. Como a maioria do meu trabalho é de reconstrução de história política, tenho cuidado de não confundi meu trabalho de historiador com o de propagandista. Você faz um trabalho político de um cara que está vivo, você pode estar se confundindo com a meta de seu trabalho: a minha meta é contar história ou elegê-lo? Eu preciso trabalhar em cima de personagens mortos. Agora, eu não me furto a fazer campanhas políticas desde que eu tenha convicção. Eu fiz o primeiro programa nacional do PCB, fiz o primeiro e o segundo [programa] nacional do PSB, na época da constituinte. Ajudei a interferir na construção de uma constituição democrática. E, já fiz personagens vivos também, mas eram artistas. Fiz [o filme biografia] da [Maria] Antonieta, uma mulher que ensinou o Rio de Janeiro a dançar. Ela está viva até hoje e esse filme tem mais de dez anos. Não é que eu não faça, eu escolho o tema para fazer.

Você, algumas vezes, fez filmes a convite. Como é o caso do Josué de Castro, feito a convite da família dele, e os filmes sobre a UNE [Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil e O afeto que se encerra em nosso peito juvenil] que foram a convite do Projeto Memória do movimento estudantil. Esses convites, de certa maneira, lhe tolhem?

Nunca tive nenhum tipo de constrangimento de, na hora final, disserem “isso pode” “isso não pode”. Nunca fiz filme que corresse o risco de sair com a cara da encomenda e não com a cara autoral. Isso é uma questão discutida antes de o filme começar a ser feito. A gente senta, olho no olho, e discuti o que quer fazer com aquele filme.

Já negou algum convite?

Muitos. Uma vez, eu recebi o convite de um banqueiro. Eu recebi o telefonema de um preposto de um banqueiro – não foi ele quem ligou pessoalmente – perguntando se eu topava fazer a biografia dele [o patrão]. Eu falei: “primeiro eu tenho de estudar a biografia dele, para ver se não tem nenhum ato na vida dele que desmereça. Se tiver, não. Mas, se não tiver, vamos lá. Aí, começou: “Você sabe, tem de ser um filme baratinho, não tem muito dinheiro”. Eu falei: “Meu amigo, eu vou trabalhar baratinho para banqueiro!?Desculpe, tem algum engano”...

Você tem um projeto de filme [Utopia e Barbárie] sobre sua geração, de 1968. Numa entrevista a Paulo César Pereio [no Sem Frescura, do Canal Brasil], você disse que tem preferência pelo tempo presente. Ao trazer à tona o ano de 1968, você acha que o jovem de hoje tem mais o que aprender com aquela geração ou tem de começar uma nova forma de revolução?

Eu aprendo muito mais com o jovem de hoje do que com minha geração. Acho que o resgate histórico sinaliza o futuro. Eu não faço um cinema com nostalgia, com saudades do passado. Não tenho nostalgia, não tenho vontade de viver no tempo do Josué [de Castro]. Tenho vontade de dizer o que o Josué fez e o que é importante que as pessoas, hoje, façam. Não tenho desejo de voltar ao passado. Nenhuma saudade, do ponto de vista de 1968, e nenhuma vontade de ser o general condecorado pelas batalhas de 68. Eu sou uma pessoa que vive meu tempo presente, voltado para o futuro. Eu trabalho do ponto de vista da reflexão. Outro dia, eu estava lendo uma entrevista que eu fiz com um professor meu, um historiador, na qual ele dizia que a história trabalha no ponto de vista da reflexão. A reflexão física também. É aquele raio que bate no espelho e se projeta para o futuro. Você não fica voltado, olhando para historia, com saudades. Eu olho para 68 e digo: “Nós éramos libertários, mas, hoje, estamos num mundo, excessivamente, careta. Vamos trazer um pouco dessa anarquia, dessa rebeldia, e vamos projetar, na vida de hoje para o futuro”. Acho que a vida hoje é bem melhor que no meu tempo.

Você já fez dois documentários sobre a UNE, em comemoração aos 70 anos da entidade. Desta Bienal, você levará mais imagens para um terceiro trabalho?

As moças estão cada vez mais bonitas. Se eu pudesse fazer um documentário poético, eu faria.

sábado, 24 de janeiro de 2009

A ciência popular por Dona Maria Gorda

“A ciência da “abeia”, da aranha e a minha/ Muita gente desconhece”. Os versos de João do Vale e Luís Vieira (confira esta canção interpretada por Tetê Espíndola), que tão bem ilustra a sabedoria popular brasileira, descrevem facilmente a Maria José Menezes dos Santos, a Dona Maria Gorda. Aos 68 anos, ela pratica e repassa os saberes acumulados desde os seis anos, aprendidos através da mãe e da Avó.

Além de rezar, Dona Maria Gorda é uma exímia conhecedora de plantas medicinais. Fabrica artesanalmente beberagens com ervas, a partir da “horta medicinal” que cultiva no quintal. Os remédios são conhecidos e aprovados pela Comunidade do Candeal, bairro onde mora há mais de 40 anos, e por adeptos da fitotepia que chegam de outras freguesias.

Dona Maria tem entre seus “rezados”, além dos vizinhos, uma lista de pessoas “de gabarito”, como ela denomina. É o caso de Carlinhos Brown e o ex-prefeito de Salvador, Antônio Imbassahí. Os saberes da rezadeira foi tema de uma matéria no Globo Repórter em 2008.

Na 6ª Bienal de Cultura da UNE, ela esteve presente na Oficina “Plantas medicinais, reconhecimento, cultivo e manipulação”, ministrada pelo Grupo de Extensão Permanente Farmácia da Terra, composta por alunos de Farmácia da UFBA. Na ocasião, os estudantes puderam conhecer mais sobre a política de plantas medicinais no Brasil, mostrando as peculiaridades da nossa “medicina popular”, sendo esta uma alternativa aos abusos da indústria farmacêutica.
Para aqueles que ainda desconhecem a ciência de Dona Maria Gorda, vai aí a entrevista que fiz com ela.

Quais são os males que a Senhora reza?

Eu rezo de mal olhado, de zipela, de dor de cabeça, de peito aberto, de vento caído, de cobreiro, de fogo selvagem, de impinge, de tudo. Já rezei “meimundo” de gente. Estou aqui, abaixo de Deus, para o que der e vier.

Também é conhecedora de plantas medicinais?

Eu cuido de planta desde os seis anos de idade. Aprendi com minha avó e minha mãe tudo que eu sei hoje. Então, agradeço a Deus e a elas pelo pouco que me ensinou. Quando eu me casei, eu rezava as pessoas lá na Baixa do Tubo, onde eu morei, mas era pouquinho. Vim ser descoberta no Candeal, quando eu rezei uma criatura de peito aberto. Ela já estava desenganada, e ficou boa. É Graciete, mora lá até hoje. O médico disse que não existia remédio, que não tinha reza para isso. Foi uma jornalista lá no Candeal. E, Ela [Graciete] falou: “tem uma senhora que reza aqui, e coisa e tal, eu me curei com ela”. Foi aí que eu fiquei conhecida. Foi a primeira entrevista que eu dei, assim, para sair no rádio, na televisão. Eu dizia assim ao meu marido: “um dia ainda vou sair na televisão, no jornal”. Ele dizia: “Você vai caçar o que fazer, pobre só sai na televisão, no jornal, quando morre, e morre de tragédia”. Eu dizia: “Não, eu vou sair com meus pequenos méritos”. Hoje em dia, graças a Deus, já cheguei até o Globo Repórter, com meus pequenos méritos.

A Senhora está passando seus conhecimentos para alguém?

Ninguém em minha casa quer aprender. Tenho duas filhas que já sabem rezar, mas só de “olhado”. Mas não quer rezar de mais nada, nem quer continuar a rezar de olhado porque ela diz que não tem pique pra isso. Às vezes, tem pessoas que eu pego e me deixam abalada. Ontem mesmo, rezei uma criança e passei mal depois. Me dar calafrios, me dar moleza, essa coisa toda. Então, elas dizem que não estão prontas para isso, não querem. Mal elas rezam os filhos. Sabem rezar, mas, quando os filhos tão moles: “Minha mãe, reze”. Eu digo: “mas você não sabe rezar?”. “Mas minha reza eu não tenho fé, não. Só tenho fé na da Senhora”.
Quem são as pessoas que a Senhora reza?

Eu já rezei Carlinhos Brown, a mãe dele, minhas comadres, meu pessoal todo. Já rezei rei, rainha, o cônsul da Espanha, a princesa e o príncipe, [Antônio] Imbassahí, Paulo Souto. Só não rezei João Henrique porque ele é ...[evangélico]. Antônio Carlos Magalhães quando era vivo. Rezei muita gente, muita gente, gente de gabarito. Gente igual a mim, gente pobre

E a senhora reza lá no posto [de saúde] também?

No posto de saúde! Você não viu no Globo Repórter?

A senhora cobra por esse trabalho?

Isso aqui eu faço e vendo [mostrou algumas beberagens engarrafadas]. Tem de R$10 e de R$6. Porque eu gasto coisa. Aqui eu compro mel, raspadura, açúcar, folhas que eu não tenho, como dandá do rio, cravo, canela... Muita coisa eu compro, mas tem coisa que eu tiro do meu quintal. Tenho minha pequena horta medicinal. Se esse mês eu faço e não cobro, para o mês eu não tenho para repor.

A senhora é ligada a alguma tradição religiosa?

Sou católica. Não sou feita no candomblé, mas gosto do candomblé. Quando eu nasci, prematura de sete meses, minha avó era mãe de santo, entendia as coisas. Me botou de barriga para cima, botou de bruços, de lado... Então, ela disse: “Esta está preparada para o mundo! Quando ela crescer e fizer onze anos e quiser seguir, ela vai fazer a parte dela”. É tanto que eu não tenho medo de macumba, não tenho medo de bruxaria, não tenho medo de nada. Abaixo de Deus, eu não tenho medo de nada. Tem uma pessoa lá no Candeal, a única pessoa, de todos os lugares que eu já morei, que eu tive desavença por causa de filho. A pessoa fez de tudo para me derrubar. Botou macumba na porta. Lutou e não conseguiu, deixou de mão.
Quando a senhora descobriu que seria rezadeira?

Com seis anos eu comecei a aprender, porque minha cabeça sempre foi boa. Doutor Paulo, da Universidade de São Paulo, fez uma entrevista comigo, há uns seis ou sete anos atrás. E disse: “Venha cá, Dona Maria, a senhora tem alguma coisa escrito?”. Eu disse: “Não”. “Como é que a senhora guarda tanta coisa?”. Eu disse: “aqui [aponta para cabeça] e aqui [aponta para o coração]”. Eu ganhei um gravador de primeiro mundo, estou botando algumas coisas no gravador. É para fazer um livro, eu nunca fiz. Pelo menos, amanhã ou depois, eu tenho alguma coisa guardada.